• Wednesday, February 24, 2021

     



    Abriam-se seus olhos, devagar. Mas pouco via, tudo estava muito turvo, embaçado. Sentia estar em algo macio, mas o corpo não respondia o suficiente para lhe permitir entender melhor o por quê. Não conseguia fazer nada além de olhar para o que parecia estar “pra cima”. O que conseguia identificar era um borrão com cores esparramadas. Coisas como um rosa leve, um azul escuro, branco, verde, vermelho e mais algumas outras, todas sem muita identificação. Mas passando segundo a segundo o tempo ajuda àquele que tentava ver, e lhe esclarece a cena.


    O que antes identificara como rosa e azul eram as coisas mais notáveis ali. Eram pele e cabelos, respectivamente. Alguma distância acima de seu rosto estava a face de uma menina, que olhava para longe, pensativa. Do pouco que ele conseguia ver do pescoço para baixo ele sabia de onde saíra o branco e o vermelho; da sua jaqueta e da blusa sobre a qual esta estava. Quaisquer outras cores eram parte do ambiente de fundo. Visto a posição das coisas no seu campo de visão, havia apenas uma conclusão: ele estava deitado no colo da garota.


    Sentiu a face entrar em choque sem que soubesse se enrubescia ou se empalidecia. Neste momento a jovem vira seu rosto para o rapaz, como se sentisse o olhar deste. A garota, que ostentava caudas simétricas nos cabelos saindo de detrás das orelhas, sorri o suficiente para fazer com que todo o brilho do mundo estivesse concentrado na sua dentição, ou melhor, seria assim caso seus azuis olhos no momento semicerrados não retivessem uma cintilância própria.




    Ei! Acordou finalmente? Eu estava ficando preocupada! – disse ela. – Estava com medo de você não voltar a abrir os olhos. Você não parecia ter se machucado demais, então optei por não te levar pra um hospital e te deitar em algum lugar próximo. Fiquei me questionando se foi a melhor decisão, mas parece que funcionou. De algum jeito...


    O rapaz sentiu em sua cabeça um “fusível” queimar. Algo não estava certo ali. O que ela disse que tinha feito? Ou melhor, como ela carregou ele até o banco e o deitou? Alguém poderia explicar pra ele? Porque certamente a confusão estava presente em sua cabeça.


    Me desculpe... Mas quem é você, pra começo de conversa? – perguntou o rapaz. – E o que aconteceu? Se não me engano eu estava perto da fonte...


    A outra ri um pouco, meio fraco, como se tentasse disfarçar algo.


    Bem, meu nome é Clis, Clis Kristallys. – começa. – Acho que a segunda questão será melhor respondida num local mais adequado. Que tal ali? – apontando com a cabeça para um café próximo. – Não deve ser nenhum problema, certo, erh, senhor... ?


    Certamente ser chamado de senhor não foi muito agradável ao outro, que fez uma pequena carranca por um breve segundo antes de responder.


    Pode me chamar de Xavier apenas. – resignado. – E não me importo, inclusive, adoraria tomar um café com leite enquanto ouço seu relato. – completa com um sorriso singelo.


    ...


    Uma charmosa e pequena fachada chamava olhos para o pequeno estabelecimento. Ostentando em suas paredes e afins uma cor verde profunda e reminiscentes dos bons e velhos tempos, o local também trazia consigo uma aparência rústica, com portas e janelas trazendo grandes vidraças. Para fechar o conjunto, uma cobertura de lona ao alto, acima do nível da porta, protegia duas mesas que ficavam em frente a loja, assim como duas plantas numa poda em globo que se encontravam em vasos, um de cada lado da portaria.


    Numa das mesas, Xavier e Clis se encontravam sentados um ao lado do outro, de costas às paredes. Um garçom servia a estes algumas coisas; à Xavier, um caneco com um líquido bege com uma espiral branca no meio; à Clis, uma xícara com um conteúdo âmbar. Ao meio da mesa um prato com alguns biscoitos variados para acompanhar.


    ... E depois de me desacordar você achou mais viável me esperar acordar durante quase uma hora ao invés de chamar uma ambulância? – falava Xavier para a garota enquanto o garçom se retirava.


    Bem, sim. – respondeu ela. – Mas não foi bem porque era a melhor idéia. Eu não sei como funciona o sistema médico daqui. E se eu tivesse que pagar pelos procedimentos? Pensa no quanto eu poderia ter que gastar numa dessas! Eu não tenho muita grana comigo! – se justifica.


    O rapaz meneia a cabeça, e então dá uma balançada leve, dizendo:


    Touché. Você tem um ponto. Por sinal, quantos anos você tem mesmo? – franzi um pouco a expressão.


    Treze anos, quase quatorze.


    Não é meio perigoso você estar em uma jornada sem ninguém te acompanhando? – questiona, encarando-a no olho enquanto leva seu café com leite a boca.


    A garota solta uma gargalhada gostosa.


    E você? Tem quantos mesmo? Dezesseis? Acho que posso te perguntar a mesma coisa. – brincalhona, enquanto bebe seu chá.


    O rapaz pausa um pouco, dá de ombros, e então segue bebendo sua bebida quente, a garota faz o mesmo.


    É engraçado como é diferente a forma como se bebe chá por aqui. Não é como se eu não tivesse tomado chá desse tipo antes, mas tomar num local assim é diferente. – comenta Clis, encarando sua xícara.


    Xavier ri de leve.


    Em Johto o chá é feito de outra forma, né? Pelo que sei a tradição é bem diferente, em alguns casos tem até toda uma ritualística. – comenta. – Por aqui também se tem algo assim mesmo que distinto do que existe lá, embora Kalos não tenha tanta herança nisso quanto Galar, até onde sei. Mas e aí? O que está achando de sua experiência pela região?


    A garota apoiou o rosto sobre uma de suas palmas, e desviou o olhar para cima, pensativa, enquanto com a mão restante seguia segurando sua xícara.


    Não sei te responder, ainda vi pouca coisa, sabe? Não é como se eu estivesse aqui há muito tempo. – respondeu após alguns segundos de contemplação. – Mas não é ruim, ao menos. Ainda não me senti desconfortável andando por aqui. Teve alguma dificuldade com a conversação, até por causa da diferença de línguas, mas eu já tinha me preparado antes de vir por algum tempo, ao menos pra me fazer entender, agora que já estou aqui a uns poucos meses já consegui resolver isso.


    O rapaz enquanto isso pegava um biscoito por vez, ouvindo a menina falar mais sobre si.


    A gente aprende a se preparar depois de ter experimentado certas dificuldades ao menos uma vez, sabe? Após eu ter terminado minha jornada por Johto eu fui rodar as Ilhas Laranja e então o Arquipélago Decolore. Nas Ilhas Laranja eu tive problemas em entender os vários sotaques de cada uma das ilhas que visitei, e em Decolore eu nem ao menos entendia a língua direito quando fui pra lá! Então quando decidi vir pra Kalos passei algum tempo estudando sobre a região e a língua, pra pelo menos não ficar perdida.


    O rapaz então sente como se uma corrente elétrica passasse em sua cabeça, como se estivesse conectando algo que estava desligado.


    Isso que você disse agora me fez lembrar de algo. – ele interrompe-a – Você mencionou que é treinadora quando viemos pro café, não é? Se importaria de treinar comigo? Eu comecei minha jornada recentemente, e não sei de muita coisa. – completou o mais velho.


    Claro! Por que não? – enquanto gargalha sem parar, colocando a xícara num pires que estava na mesa ( viera em conjunto com a outra peça ) para que não acontecesse algo com a primeira.


    Ei, por que está rindo? – pergunta Xavier, segurando um misto de gargalhada e bufo.


    Porque você, que é bem mais velho do que eu, ainda é um iniciante e está me pedindo ajuda com uma coisa dessas. – com um sorriso pequeno.


    Não sou tão mais velho assim. – retrucou, com uma pequena careta. – Só nasci uns três anos antes de você, que agora quase me chamou de tiozão por tabela. Poxa, até onde sei não é tão raro pessoas começarem na minha idade suas jornadas.


    Mas também não é comum, você tem que admitir. – rebate ela.


    O garoto suspira, não podia negar o argumento.


    Mas bem, posso chamar o garçom pra fechar a conta? – ele questiona. – Tenho que encontrar com uma pessoa antes de podermos treinar. Combinei de encontrar ela mais ou menos nesse horário, se bobear deve até estar arrancando os cabelos nesse momento. – ri.


    A garota acena que sim com a cabeça em resposta a questão do rapaz, rindo idem.


    François! – grita Xavier. – Trás a conta!


    ...


    O rapaz e a garota algum tempo depois podiam ser vistos andando rumo a uma enorme construção de mármore branco e travertino já conhecida do primeiro, a prefeitura com dupla aptidão, pois também funcionava como escola. Andando devagar, o mais velho virava sua cabeça devagar de um lado a outra, procurando por algo. Em algum tempo ele fixa sua visão num banco, escondido na parte lateral da construção. Uma mulher de loiros cabelos ali estava, com uma expressão neutra no rosto, embora desse pra notar uma certa ansiedade ou mesmo falta de paciência pelo movimento repetitivo de levantar e abaixar de calcanhar que ela fazia com uma das pernas.


    O rapaz aproxima com certo cuidado, mas sem ser excessivamente cauteloso.


    Ei, Nova! – chama ele ao se aproximar o suficiente para não ter que gritar muito alto.


    Ela então se vira em sua direção, e o fita, para em seguida passar seu olhar para a figura que o acompanhava. Sua face antes cheia de neutralidade apresenta então uma carranca. Nova se vira novamente ao rapaz e diz:


    Eu te dou UM minuto para me explicar o que está acontecendo. – com um sorriso estranho, e com veias imaginárias pulsando em sua testa.


    O rapaz gargalha seco.


    Ocorreram umas coisas, acabei saindo mais cedo e indo perambular, daí encontrei Clis e depois de uma série de coisas viemos te procurar. – tentou sintetizar o máximo possível.


    A moça sorri com certo escárnio ao ouvir a resposta dele.


    O que você andou fazendo pra conseguir que uma garota nova assim te seguisse? Chamando até pelo nome em tão pouco tempo?


    O rapaz se desconcerta.

    É, bem, como explicar... – o rapaz, meio sem jeito, procura um jeito de explicar.


    Eu atropelei ele. – a garota de cabelos azuis que até o momento não se pronunciara diz.


    Silêncio, ou assim deveria ser, caso não estivessem no meio da cidade, com som de outras pessoas ecoando junto ao gorjear de alguns pássaros anormais.


    Você disse... Atropelado? – perguntou a loira, quebrando o impasse estranho da conversa.


    A outra afirma com um gesto de cabeça.


    Como que você conseguiu essa proeza? – pergunta Nova, com uma cara num misto de surpresa e descrença.


    Ele estava andando meio distraído, e eu estava andando de patins no momento, ou tentando, ou só fora de controle mesmo. – tenta explicar mais nova, fazendo estranhas correções no processo. – Meio que eu não estava mais conseguindo parar, ele estava no caminho, eu gritei pedindo pra ele sair da frente e ele não ouviu. O resultado foi ele caindo no chão e ficando uma hora desacordado. Foi difícil levar ele pra um banco. Quando ele finalmente acordou nós ficamos conversando sobre o que ocorreu, e uma coisa leva a outra. Meio que eu sou treinadora, sabe? Ele me pediu pra treinar um pouco com ele, mas antes disse que tinha que procurar alguém e que essa pessoa estaria muito nervosa com o atraso dele.


    Nova cora um pouco com o final da explicação e vira o rosto, embaraçada.


    Então foi isso que aconteceu? – diz. – Mas por quê você não chamou uma ambulânci- ah, esquece, dinheiro, sei como é... – termina antes mesmo de começar, com certo desgosto no rosto transparecendo quanto ao assunto monetário. Parecia ter se lembrado de algo ruim.


    Mas bem, Nova. – diz Xavier, agora menos sufocado graças a ajuda bem vinda de Clis. – Eu vim te avisar quanto a isso do treino e te perguntar se quer vir também. Além disso, sabe algum lugar legal pra isso?


    A referida sorri singelamente, como se fosse outra pessoa neste momento. Saber que o recente amigo pensara nela durante o processo já trazia certo calor no peito. Talvez já fizesse um tempo que ela tivera contato tão intenso com alguém tal qual com ele.


    Acho que sei sim de um lugar que pode ser ideal... E por quê não iria? Pode ser interessante treinar com vocês, já faz algum tempo que não faço algo assim.



    Frente a uma casa de estilo integrado ao da cidade, param três pessoas, um rapaz e duas moças. Uma das garotas, de cabelos azulados, diz:


    Foi legal te ajudar a treinar, Xavier, foi engraçado. Você disse que se tudo der certo tu vai desafiar o ginásio ainda essa semana, né? Se assim você conseguir, passa lá no Centro Pokémon e me chama pra ir assistir!


    Chamo sim. – responde o rapaz do grupo. – Então a gente separa aqui, né? Até mais, Clis.


    Foi bom te conhecer, garota, vamos nos encontrar um dia desses pra eu falar mal dele! – diz a outra moça, ou melhor, mulher, que estava com eles enquanto aponta para o amigo ao lado.


    Clis sorri, dá um tchau sem palavras, apenas com um aceno, e vai embora. Assim, ficam apenas duas pessoas naquele lugar.


    Então, Nova, como foi passar o dia com dois pirralhos? – pergunta o jovem a mulher.


    Até que não foi ruim, sabe. Poderia repetir a experiência mais vezes. – respondeu. – Só não pense que eu vou te deixar escapar... – resmunga baixinho.


    O que disse? – pergunta o rapaz, não tendo compreendido o que fora dito ao fim.


    Nada, nada. Vamos entrando então, já está razoavelmente tarde e eu tô com fome. Você disse ontem a noite que sabia cozinhar né? Faz algo bacana aí pra gente. – dizia a mulher enquanto adentrava pela porta da frente.


    Xavier então a segue, respondendo-a e gesticulando para tentar explicar alguma coisa vez ou outra. A porta se fecha, mas o silêncio não chega as ruas, afinal, ambos ainda eram bastante audíveis mesmo estando no interior da construção. Nada além de mais um dia terminando na jornada conhecida como vida...



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    1. Sem dinheiro para ambulância, otima justificativa, tal como o capitulo em si! Adorei!

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      1. DINHEIRO É TUDO FIA, PRINCIPALMENTE SE TU NAO SABE AS LEIS DE UM LUGAR! ( É SÉRIO, TEM PAÍS QUE COBRA POR SERVIÇOS ASSIM )

        E é legal que o capítulo tenha sido do seu agrado. Obrigado pela presença e até mais!

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    2. Um capítulo muito legal, finalmente tivemos as chances de conhecer a personagem que você tanto nos falou no grupo de Discord. Devo confessar que achei ela muito mais interessante do que realmente imaginava, gostei da sua personalidade e dos jeitos dela.

      Além disso amei os detalhes como a diferença de linguas e todo funcionamento de uma região para a outra, normalmente, é muito dificil vermos isso em histórias de pokémon, onde para muitos autores, todos os personagens possuem uma lingua universal e que cada região não possui sua própria maneira de "funcionar" seja no centro pokémon ou até na liga.

      Capítulo que passou voando, mas muito legal e que aumenta ainda mais esse Worldbuilding sobre a região de Kalos. Ótimo trabalho.

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      1. Bicho, tu acompanha minhas divagações no discord a certo tempo, e sabe o tempo que eu fiquei pensando em como trazer algumas coisas pra esse universo, e confesso que mesmo esse pouco foi difícil. A idealização tá toda pronta na cabeça, mas a execução trava a gente, às vezes queremos muito mas fazemos pouco, e meio que fiquei com essa sensação quando terminei o capítulo. Felizmente, no entanto, o capítulo parece ter ficado agradável e passado o que eu desejava passar. Worldbuilding e characterbuilding é importante, adiciona profundidade a história.

        Então tipo, é muito bom que tu tenha gostado tanto da nova adição no nosso elenco quanto do capítulo em si. Valeu ai pela presença, e até logo!

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    3. Hello, Napo!
      Olha o Xavier não morreu! Que bom, isso quer dizer que nosso shipp ainda pode existir. Ou será que ele morreu e estamos no céu? Ou será que ele está em coma? Isso nunca saberemos. Foi um capítulo mais curto, porém de conteúdo interessante. Gostei muito da Clis, de verdade, essa personalidade um pouco tímida e tagarela deixou ela bem fofa, tomara que apareça logo.
      É impressão minha ou a Nova está com ciúmes do Xavier? Nunca dá pra entender direito as reações dela. O engraçado é que ela murmura as coisa sempre, fico pensando no porque disso.
      Achei muito interessante o fato de você se lembrar dessa coisa de hospital e custos, isso quase nunca é lembrado/mencionado nas fics, mas faz muito sentido essas diferenças. Colocar isso da fic é legal por que engrandece ainda mais a região que você está escrevendo e eu dou muito valor a isso.
      Enfim, comentário não muito grande, mas o cap ficou bem legal. Ansiosa para ver como o Xavier irá se sair no ginásio.
      Abraços, Napo, e até o próximo cap!

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      1. Qualquer dúvida sobre o estado de vida do Xavier, pode considerar que ele já é o Xavier de Shrodinger.

        Bicho, que bom que curtiu a Clis! Sim, ela tem um misto de timidez e tagarelice bem bacana! Sobre a Nova, bem, ela é uma personagem meio passional, bem emotiva, coisa retirada de histórias para jovens da terra do sol nascente... Nisso temos uma personagem que se expressa sempre, sabe?

        Quanto a essas questões de funcionamento da coisa pública da região, eu achei importante desenvolver, sabe? A Clis ela vem de uma região baseada no Japão, onde não se tem um sistema público de saúde gratuito como no Brasil, e Kalos é baseada na França que eu não sei como funciona, nisso eu achei interessante marcar essas diferenças de percepção. A gente aqui do Brasil toma muito como garantido que exista saúde gratuita, mesmo que vivamos reclamando dela, então é meio difícil de conceber para alguns a ideia de um lugar onde você não possa ter esse acesso sem dinheiro.

        Obrigado por ter lido o capítulo, e que bom que curtiu! O próximo capítulo deve lançar em breve, então até lá!

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